A Europa pode escolher entre aceitar a pressão para se alinhar com a administração Trump, permanecendo na inércia do sistema multilateral anterior, ou tornar-se um participante ativo na reforma do multilateralismo global.
Poderemos sentir uma regressão histórica inegável? Sim, podemos se uma conquista civilizacional da humanidade como um todo começar a ser desmantelada. É o que está a acontecer atualmente com algumas das componentes críticas do sistema multilateral: paz e segurança, clima, saúde, pobreza, direitos humanos e transformação digital.
Poderá esta regressão ser liderada por aqueles que lideraram esta progressão histórica no passado? Paradoxalmente, sim. É isso que está a acontecer agora, quando a administração Trump se afasta do trabalho multilateral sobre o clima, a saúde, a alimentação, os objetivos de desenvolvimento sustentável, a paz e, mais recentemente, o comércio aberto e regulado, com uma guerra tarifária que pode causar uma estagflação duradoura — combinando a inflação com a recessão e a perda de empregos em todo o mundo — e uma negociação tarifária que transformará o mundo num grande bazar para tudo.
Pode piorar ainda mais? Sim, se esta abordagem substituir uma ordem baseada em regras por uma ordem baseada no poder, onde grandes potências lutam por grandes áreas de influência e acesso a recursos, custe o que custar, e causam um choque sistémico à governação multilateral.
Precisamos mesmo de uma governação global multilateral? Claro que sim. Esta tornou-se uma questão não só de inclusão e representatividade na governação global, mas também de eficácia ao lidar com os atuais desafios globais. Tornou-se uma questão de interesse comum e de sobrevivência para toda a humanidade.
Para evitar a regressão histórica em curso, basta defender o sistema multilateral tal como o temos agora? De modo algum, porque a nossa é ineficaz, não representativa e injusta. A única saída é defender um multilateralismo profundamente reformado, mais forte para impor a paz e a segurança, combater as alterações climáticas, prevenir pandemias, reduzir a pobreza, enquadrar a transformação digital e implementar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável com meios financeiros mais poderosos. Precisamos também de uma distribuição mais justa destes meios e do acesso a recursos e conhecimento, permitindo aos países em desenvolvimento uma hipótese real de recuperar o atraso e avançar para uma nova estratégia de desenvolvimento, aproveitando ao máximo as transições verde e digital. Isto só será possível se o sistema multilateral refletir uma governação global mais inclusiva e representativa, dando uma voz mais forte aos países em desenvolvimento e a um vasto leque de intervenientes da sociedade civil.
Existe um projeto para orientar esta reforma do sistema multilateral, que foi adotado por uma grande maioria dos estados-membros da ONU pouco antes da eleição de Trump. Em Setembro de 2024, a Cimeira do Futuro em Nova Iorque conseguiu, após um complexo processo de negociação, adotar um Pacto para o Futuro que identifica reformas importantes para melhor implementar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, alterar a arquitetura financeira global, melhorar o acesso à ciência e à tecnologia, definir uma estrutura global para governar a transição digital e a IA, bem como atualizar a composição do Conselho de Segurança da ONU e pressionar por uma nova agenda de paz.
Este ano é também um ano de oportunidades, que serão criadas por uma sequência de cimeiras das Nações Unidas que se concentrarão em componentes críticas deste Pacto para o Futuro e produzirão planos mais precisos e operacionais para o implementar. A Conferência das Nações Unidas sobre Financiamento para o Desenvolvimento, em Sevilha, em julho; a Cimeira da ONU sobre a Sociedade da Informação em Genebra, também em julho; a COP sobre alterações climáticas em Belém, em novembro, e a Cimeira da ONU sobre Desenvolvimento Social em Doha, também em novembro de 2025.
É vital organizar coligações de vontades, desenvolver novas alianças e parcerias para compromissos concretos nestas cimeiras e introduzir novos métodos para melhorar o trabalho multilateral. A Europa tem a escolha entre aceitar pressões para alinhar com a administração Trump, permanecer na inércia do sistema multilateral anterior ou tornar-se um participante ativo nesta reforma do multilateralismo. Os atores progressistas europeus, tanto nas instituições políticas como na sociedade civil, têm uma particular responsabilidade de pressionar por esta terceira escolha.
Isto pode dar certo? Sim, porque apesar de uma extrema-direita internacional poderosa e organizada, há muitas outras forças a pressionar na direção certa: um número crescente de atores dentro e fora dos EUA, cidadãos mais informados, apesar da desinformação nas redes sociais e um reequilíbrio geral do mundo limitando o poder do hegemon estabelecido. Finalmente, um argumento convincente: os futuros desafios globais não podem realmente ser enfrentados sem uma cooperação internacional muito mais forte. Existe uma grande probabilidade de que a regressão no curto prazo possa ser ultrapassada por uma progressão no longo prazo. Vamos trabalhar para aumentar estes desafios.